Dominguinhos
não se contorcia nem se lamentava. Apenas segurava a mão da mulher e ouvia de
olhos fechados suas declarações de amor. “Eu estou aqui, Domingos. Olha pra
mim, fica comigo.” Guadalupe desconfiou que seu pássaro se aprontava para voar.
Depois de sete meses internado no hospital Sírio Libanês lutando como touro
contra um câncer no pulmão, depois de driblar sete paradas cardíacas e sofrer
com as sequelas deixadas pela falta de oxigenação no cérebro, Dominguinhos
parecia não ter mais forças. Guadalupe foi até o aparelho de som do quarto,
pegou um dos CDs na prateleira e colocou a música Casa Tudo Azul, do próprio
sanfoneiro.
Ficaram os dois ali, sem dizer nada. Até que Guadalupe, um pouco mais tarde,
sentiu o homem partindo. “Eu fiquei agradecendo tudo o que ele fez de bom. E
ele partiu para a eternidade com uma serenidade infinita.” Às 20h10, o Sírio
Libanês divulgou uma nota de três linhas: “O Sr. José Domingos de Moraes
faleceu nesta terça-feira, às 18h, em decorrência de complicações infecciosas e
cardíacas.”
“É
sanfona mesmo.” Era sanfona mesmo. Com Dominguinhos não tinha esse negócio de
acordeão. “Acordeão, gaita - tudo coisa do pessoal do Sul, acostumado a
inventar moda para deixar chique o que era do povo”, dizia. Quando menino,
queria saber de tocar, e tocar igual ao pernambucano cara de lua cheia e voz
potente que chamavam de Rei do Baião. Gonzaga viu um dia Domingos tocando no
meio da rua, ao lado dos irmãos. Comovido, convidou-o para morar no Rio de
Janeiro, deu-lhe um belo fole de 120 baixos e assistiu sua cria virar
Dominguinhos.
O
cetro de uma nação inteira foi passada para ele antes mesmo que Gonzagão
morresse. Gonzaga dizia a quem quisesse ouvir que seu maior seguidor, muitas
vezes maior do que ele mesmo, era aquele moleque de Garanhuns, com voz menos
potente mas dedos mais ligeiros. Dominguinhos ainda não era mito, mas seria
para ele que o mundo olharia quando quisesse saber de baião, xote, xaxado,
forró. “Não é tudo a mesma coisa, não. Cada nome é um ritmo muito diferente”,
ensinava. Mais: o rapaz de sorriso grande e fácil estudou um pouco mais do que
Gonzaga e pulou a cerca para a fazenda do vizinho. Aprendeu a fazer jazz,
choro, bossa nova. O que lhe caía nas mãos ele tocava, e com uma entrega que
fazia a testa de Gonzaga suar nas vezes em que os dois se apresentavam juntos.
Uma delas foi no aniversário de 75 anos de Gonzagão, em Exu. Quando chegou a vez de Dominguinhos fazer sua parte, ele puxou um tema difícil que vinha do baião mas que passava por uma quebradeira rítmica que tiraria o chão até dos grandes jazzistas. De olhos fechados, entrou em um transe que só acabou na última nota. Quando acordou, seu rosto ainda estava desfigurado e o de Gonzaga, ao seu lado, brilhando. Se quisesse sair do Brasil para fazer carreira ao lado dos mestres, era só dizerem a data. Mas Dominguinhos sentia que seu lugar era aqui.
Ainda que sentisse outra coisa, só sairia do Brasil de carro ou de jegue. De avião, jamais. Voar era o inferno para Seu Domingos. Ele adorava dirigir, poderia cruzar o País assim, mas voar não. Em dezembro passado, entrou em um carro para seguir para Exu, terra do padrinho Gonzagão, onde faria um show para lembrar dos 100 anos do Rei. Deixou a mulher Guadalupe com o coração na mão quando ligou dizendo que estava com febre. “Volta, homem de Deus, isso não vai dar certo”, ela implorava. Mas Domingos agia como se estivesse diante de uma promessa a Padre Cícero. Não deixaria essa terra se não fosse pegar a bênção de Gonzagão e lhe dar os parabéns. Ao tocar, enfraqueceu. Sua respiração ficou difícil e seus lábios arroxearam. “Não estou bem”, disse, na última ligação que fez a Guadalupe. Internado, seguiu de avião para São Paulo, onde foi levado direto para o Sírio Libanês. Até ontem, viveria mais sete meses antes de se tornar imortal.
Uma delas foi no aniversário de 75 anos de Gonzagão, em Exu. Quando chegou a vez de Dominguinhos fazer sua parte, ele puxou um tema difícil que vinha do baião mas que passava por uma quebradeira rítmica que tiraria o chão até dos grandes jazzistas. De olhos fechados, entrou em um transe que só acabou na última nota. Quando acordou, seu rosto ainda estava desfigurado e o de Gonzaga, ao seu lado, brilhando. Se quisesse sair do Brasil para fazer carreira ao lado dos mestres, era só dizerem a data. Mas Dominguinhos sentia que seu lugar era aqui.
Ainda que sentisse outra coisa, só sairia do Brasil de carro ou de jegue. De avião, jamais. Voar era o inferno para Seu Domingos. Ele adorava dirigir, poderia cruzar o País assim, mas voar não. Em dezembro passado, entrou em um carro para seguir para Exu, terra do padrinho Gonzagão, onde faria um show para lembrar dos 100 anos do Rei. Deixou a mulher Guadalupe com o coração na mão quando ligou dizendo que estava com febre. “Volta, homem de Deus, isso não vai dar certo”, ela implorava. Mas Domingos agia como se estivesse diante de uma promessa a Padre Cícero. Não deixaria essa terra se não fosse pegar a bênção de Gonzagão e lhe dar os parabéns. Ao tocar, enfraqueceu. Sua respiração ficou difícil e seus lábios arroxearam. “Não estou bem”, disse, na última ligação que fez a Guadalupe. Internado, seguiu de avião para São Paulo, onde foi levado direto para o Sírio Libanês. Até ontem, viveria mais sete meses antes de se tornar imortal.
Julio Maria - O Estado de S. Paulo
ANDRÉ:Belíssima sua homenagem.Creio que todo o Brasil está de luto.
ResponderExcluirSinto-me muito triste pela partida de um músico que mais parecia o Luiz Gonzaga encarnado, porém, tinha sua própria essência!