Por experiência traumática em parto anterior,
mulher comprou uma arma de fogo em atitude desesperada, pois pretendia tirar
própria vida caso passasse por mesmo processo
A dona de casa Paula de Oliveira Pereira, 28
anos, mãe de quatro crianças que têm entre 11 anos e 11 meses, tem as piores
recordações do parto dos filhos, todos feitos em hospitais públicos da grande
São Paulo. “Foram pesadelos”, conta. Mas o nascimento do terceiro bebê, em
2015, ela classifica como “traumatizante” e o “pior de todos”. Ficou 14 horas
em trabalho de parto, sem acompanhante, embora tenha direito a um, segundo a
lei. Pediu anestesia para aguentar as contrações. Não foi atendida.
Desorientada, caiu da maca, de barriga no chão. “Não sei como meu filho não
morreu no tombo”, lembra. Lá pelas tantas ouviu que ele não nascia porque ela
era “fraca” e “não fazia força suficiente”. “Daí a enfermeira subiu em cima de
mim, para empurrar o bebê. Fiquei sem ar, minha barriga ficou toda roxa”,
lembra, disse.
Ano passado, já grávida do caçula, seu plano
era um só: juntar dinheiro para conseguir pagar por uma cesárea em um hospital
particular. Os meses passaram, mas Paula não conseguiu economizar o suficiente
para a cirurgia. “O parto ia chegando, eu ia ficando cada vez mais angustiada.
Não conseguia parar de pensar que ia passar mais uma vez por toda aquela
violência”.
Desesperou-se e comprou uma arma, sem que o
marido ou a mãe soubessem. “Eu planejava chegar na maternidade e pedir por uma
cesárea. Se não fosse atendida, ia me matar. Sabia que não ia aguentar tudo
aquilo de novo”, conta. Quando a bolsa estourou e foi pro hospital, o marido de
Paula, que não sabia que a mulher estava com uma pistola escondida na bolsa,
mas tinha consciência de quanto o último parto tinha sido traumatizante, pediu
uma cesariana para o plantonista. “Ele
explicou que meu último parto tinha sido complicado. Mas o médico gritou. Disse
que quem mandava ali era ele, que paciente não tem escolha, quem escolhia o
parto era o ele. Que se eu quisesse ir embora procurar outro hospital, podia
ir”, conta.
Em um misto de dor e angústia lembra de ter
mandado uma mensagem para a mãe, dizendo que estava na maternidade, tinha uma
pistola e ia se matar. A avó do bebê correu para o hospital e avisou que a
filha estava armada. A polícia foi chamada. Paula conseguiu a cirurgia
cesariana, mas foi separada do bebê e presa assim que recebeu alta, três dias
depois do parto, por porte ilegal de arma. “Fui levada direto para a delegacia
de Itapecerica e depois fui transferida para (o presídio de) Franco da Rocha,
em um camburão, mesmo com a barriga cheia de pontos. Fiquei 21 dias presa, não
pude conhecer meu filho e não consegui amamentar”.
O advogado de Paula conseguiu que ela
esperasse o julgamento em liberdade. A audiência foi mês passado. A promotora
de Justiça de Itapecerica da Serra, Daniela Dermendjian, pediu a absolvição da
dona de casa. A juíza concordou. “Ela contou no depoimento que levou a arma
para a maternidade para se matar se os médicos não fizessem a cesárea. A gente
entendeu que ela queria se suicidar e suicídio não é crime”, explica a
promotora que, por coincidência, está grávida de nove meses e planeja um parto
normal para dar à luz seu filho nas próximas semanas.
Daniela Dermendjian conta que conversou com
Paula depois da audiência. Explicou que o que ela sofreu nos partos dos seus
filhos tem nome: violência obstétrica. “Orientei para que denunciasse ao
Ministério Público. Esse é nosso principal desafio, fazer com que as mulheres
saibam que certos procedimentos no parto não são normais e precisam ser
denunciados para que possamos agir”, explica a promotora de Justiça,
ressaltando que o Ministério Público abre inquérito civil para apurar casos
como o da dona de casa.
A violência obstétrica pode ocorrer na
gestação, no momento do parto e do pós-parto ou no atendimento em situações de
abortamento. Em países como a Argentina e a Venezuela, já é reconhecida como
crime. Humilhar a mulher com gritos e xingamentos, negar a aplicação de
anestesia e de outros métodos de analgesia, não permitir a entrada de um
acompanhante e pôr em prática procedimentos como a manobra de Kristeller,
quando se ‘deita’ sobre a parturiente para pressionar a parte superior do útero
para ‘agilizar’ a saída do bebê, movimento contraindicado pelo Ministério da
Saúde, são tipos de violência contra a mulher. (Saiba se você foi vítima de
Violência Obstétrica lendo este post do blog Mães de Peito, da jornalista
Giovanna Balogh).
Segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e
gênero nos espaços público e privado da Fundação Perseu Abramo, uma em cada
quatro mulheres brasileiras sofre algum tipo de violência no atendimento ao
parto, lembra a advogada e ativista Ana Lucia Keunecke, da ONG Associação
Mulher sem violência. “
Violentam-se
mulheres das mais variadas formas e a saída que elas têm, na maioria das
vezes, é a cirurgia cesariana sem que perceber que isso também é uma
violência”, afirma. “A mulher sofre tantas crueldades que muitas vezes vai para
o parto como se estivesse indo para uma sessão de tortura”, conclui. A
psicanalista e doutora em psicologia Vera Iaconelli, fundadora do Instituto
Gerar, lembra que o período entre o nascimento e os primeiros meses do bebê
coloca a mulher em um período de muita vulnerabilidade psíquica. “Ir armada
para o parto, para garantir que não será vítima de violência mostra bem a
impotência das mulheres diante dessa situação. Precisar implorar por uma
cirurgia porque o parto dito como normal é violento mostra como as saídas para
a mulher vão ficando aberrantes”, afirma.
O obstetra Bráulio Zorzella, uma das
referências do parto normal humanizado no Brasil, ficou chocado com a história
de Paula. “Ela não tinha medo do parto normal, mas sim da violência daquele
tipo de parto normal”, comenta. Ele lembra que o medo de um parto normal
violento faz com que o Brasil seja campeão mundial de cesáreas. “O ponto-chave
é que saber que existe outro caminho além da cesárea, que é o da humanização do
parto, o atendimento respeitoso e o acolhimento da mãe”, completa.
Paula é portadora do gene da trombofilia, não
pode tomar anticoncepcional e está grávida de novo, de quatro meses. Luta por
uma nova cesárea, mas agora porque quer ligar as trompas durante o nascimento
do novo caçula. Sabe que tem direito à esterilização por lei, porque tem mais de 25 anos e pelo menos dois
filhos vivos. Mas ainda está insegura se, desta vez, sua vontade será
respeitada. “Falaram que eu posso fazer
a cesárea com a laqueadura. Mas ainda não sei se vou conseguir. Já pedi para a
médica do posto. Mesmo assim estou apreensiva”, conta. “Eu conto com Deus. Eu
acredito muito em Deus. Só tendo fé, viu?”
Agência Estado
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